As
Verdadeiras Amizades
São Francisco de Sales
mas não traves amizade senão com aquelas pessoas cujo convívio te pode ser proveitoso; e quanto mais perfeitas forem estas relações, tanto mais perfeita será a tua amizade.
Se a relação é de ciências,
a amizade será honesta e louvável e o será muito mais ainda se a relação for de
virtudes morais, como prudência, justiça, fortaleza; mas se for a religião, a
devoção e o amor de Deus e o desejo da perfeição o objeto duma comunicação mútua
e doce entre ti e as pessoas que amas, ah! então tua amizade é preciosíssima. É
excelente, porque vem de Deus; excelente, porque Deus é o laço que a une,
excelente, enfim, porque durará eternamente em Deus.
Ah! quanto é bom amar já na
terra o que se amará no céu e aprender a amar aqui estas coisas como as amaremos
eternamente na vida futura. Não falo, pois, aqui simplesmente do amor cristão
que devemos a nosso próximo, todo e qualquer que seja, mas aludo à amizade
espiritual, pela qual duas, três ou mais pessoas se comunicam mutuamente as suas
devoções, bons desejos e resoluções por amor de
Deus, tornando-se um só coração e uma só alma.
Com toda a razão podem
cantar então as palavras de
David: Oh! quão bom e agradável é habitarem
juntamente os irmãos! Sim, porque o bálsamo precioso da devoção
está sempre passando dum coração ao outro por uma contínua e mútua participação;
tanto assim que se pode dizer que Deus lançou sobre esta amizade a sua bênção
por todos os séculos dos séculos.
Todas as outras amizades
são como as sombras desta e os seus laços são frágeis como o vidro, ao passo que
estes corações ditosos, unidos em espírito de devoção, estão presos por uma
corrente toda de ouro. Todas as tuas amizades sejam desta
natureza, isto é, todas aquelas que dependem de tua livre escolha, porque não
deves romper nem negligenciar as que a natureza e outros deveres te obrigam a
manter, como em relação a teus pais, parentes, benfeitores e
vizinhos.
Hás de ouvir talvez que não
se deve consagrar afeto particular ou amizade a ninguém, porque isto ocupa por
demais o coração, distrai o espírito e causa ciúmes; mas é um mau conselho,
porque, se muitos autores sábios e santos ensinam que as amizades particulares
são muito nocivas aos religiosos, não podemos, no entanto, aplicar o mesmo
princípio a pessoas que vivem no século — e há aqui uma grande
diferença.
Num mosteiro onde há
fervor, todos visam o mesmo fim, que é a perfeição do seu estado, e por isso a
manutenção das amizades particulares não pode ser tolerada ai, para precaver
que, procurando alguns em particular o que é comum a todos, passem das
particularidades aos partidos.
Mas no mundo é
necessário que aqueles que se entregam à prática da virtude se unam por uma
santa amizade, para mutuamente se animarem e conservarem nesses santos
exercícios. Na religião os caminhos de Deus são fáceis e planos e os que ai
vivem se assemelham a viajantes que caminham numa bela planície, sem necessitar
de pedir a mão em auxílio. Mas os que vivem no século, onde há tantas
dificuldades a vencer para ir a Deus, se parecem com os viajantes que andam por
caminhos difíceis, escabrosos e escorregadiços, precisando sustentar-se uns nos
outros para caminhar com mais segurança.
Não, no mundo nem todos têm
o mesmo fim e o mesmo espírito e dai vem a necessidade desses laços particulares
que o Espírito Santo forma e conserva nos corações que lhe querem ser fiéis.
Concedo que esta particularidade forme um partido, mas é um partido santo, que
somente separa o bem do mal: as ovelhas das cabras, as abelhas dos zangões,
separação esta que é absolutamente necessária.
Em verdade não se pode
negar que Nosso Senhor amava
com um amor mais terno e especial a S. João, a Marta, a Madalena e a Lázaro, seu irmão, pois que o Evangelho o dá a entender claramente. Sabe-se que S. Pedro amava ternamente a S. Marcos e a Santa Petronila, como S. Paulo ao seu querido Timóteo e a Santa Tecla.
com um amor mais terno e especial a S. João, a Marta, a Madalena e a Lázaro, seu irmão, pois que o Evangelho o dá a entender claramente. Sabe-se que S. Pedro amava ternamente a S. Marcos e a Santa Petronila, como S. Paulo ao seu querido Timóteo e a Santa Tecla.
S. Gregório Nazianzeno,
amigo de São Basílio, fala com muito prazer e ufania de sua íntima amizade,
descrevendo-a do modo seguinte: parecia que em nós havia uma só alma,
para animar os nossos corpos, e que não se devia mais crer nos que
dizem que uma coisa é em si mesma tudo quanto é e não numa outra;
estávamos, pois, ambos em um de nós e um no outro. Uma única e a
mesma vontade nos unia em nossos propósitos de cultivar a virtude, de conformar
toda a nossa vida com a esperança do céu, trabalhando ambos unidos como uma só
pessoa, para sair, já antes de morrer, desta terra
perecedora.
Santo Agostinho testemunha
que Santo Ambrósio amava a Santa Mônica unicamente devido às raras virtudes que
via nela e que ela mesma estimava este santo prelado como um anjo de
Deus.
Mas para que deter-te tanto
tempo numa coisa tão clara? S. Jerônimo, Santo Agostinho, S. Gregório, S.
Bernardo e todos os grandes servos de Deus tiveram amizades particulares, sem
dano algum para a sua santidade.
S. Paulo, repreendendo os
pagãos pela corrupção de suas vidas, acusa-os de gente sem afeto, isto é, sem
amizade de qualidade alguma. Santo Tomás reconhecia, com todos os bons
filósofos, que a amizade é uma virtude e entende a amizade particular, porque
diz expressamente que a verdadeira amizade não pode se estender a muitas
pessoas.
A perfeição, portanto, não
consiste em não ter nenhuma amizade, mas em não ter nenhuma que não seja boa e
santa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário